Como a escola de samba de Salvador representa o valor ancestral do Carnaval
Desfile da Unidos de Itapuã | Foto: Arquivo pessoal
“Abaeté. Tudo meu e dela, a lagoa bela sabe, cala e diz. Eu cantar-te nos constela em ti. E eu sou feliz”, diz os versos de Itapuã, música de Caetano Veloso. E é na Lagoa do Abaeté, situada na área de proteção ambiental do Parque Metropolitano Lagoa e Dunas do Abaeté, localizado em Itapuã, bairro usado como licença poética para várias melodias de outros artistas, como Dorival Caymmi, que fica a Casa da Música, espaço alugado como sede da escola de samba Unidos de Itapuã.
A Unidos ainda é uma das poucas escolas que representa resistência em um Carnaval de Salvador dominado por blocos. Das 60 escolas de samba soteropolitanas da década de 1960, restam apenas três: a Unidos de Itapuã, Diamante Negro e Filhos da Feira de São Joaquim. A Unidos começou a ter notoriedade na cena do Carnaval da capital baiana pelas apresentações na Lavagem de Itapuã, que tradicionalmente acontece todos os anos no dia 9 de fevereiro. A Lavagem representa um ritual de passagem, no início do ano, em que a água limpa é utilizada para renovar, purificar e promover o renascimento.
A Unidos de Itapuã é um símbolo de resistência | Foto: Arquivo pessoal
É dessa maneira que Nailton Maia, 44, percussionista e um dos fundadores da Unidos de Itapuã, descreve o sentimento de ver a escola voltar a desfilar em 2023, após três anos de pandemia da Covid-19. “Foi uma lavagem de alma e agradecimento”, diz. Em entrevista a DémodÉ ele conta que o período de restrições desestruturou a Unidos, que atualmente luta para se restabelecer, com a elaboração do estatuto, instrumento necessário para as regras de organização e funcionamento da escola.
Conflito
Mesmo com o retorno, Nailton relata que a escola enfrenta diversas dificuldades, como a falta de incentivo e custeio do governo para apresentações. “A ajuda de custo acontece no Fuzuê [uma das festas que antecede a data oficial do Carnaval de Salvador] e no Pelourinho [onde costumam desfilar], mas não na Lavagem de Itapuã e hoje a escola não é tão rentável. Ainda acredito que temos que procurar meios de nos desvencilhar do poder público”, argumenta.
Nailton diz que há momentos em que o mestre sala, a porta bandeira e a rainha de bateria precisam custear o próprio traje para o Carnaval, mas o valor adquirido com a apresentação no Fuzuê é repassado para eles como reembolso. Além disso, o grupo realiza apresentações particulares para custear os gastos durante as festas de verão.
Mestre sala e porta bandeira | Foto: Arquivo pessoal
O responsável pela confecção das camisetas da bateria da escola, Binho, irmão de Nailton, recebia a ajuda de Yuka Sugiura, 52, professora de japonês, patinação e samba, e rainha de bateria da escola até 2020, que saiu do Japão para morar em Camaçari, Região Metropolitana de Salvador (RMS). Nailton diz que a ajuda dela foi fundamental para a ascensão da escola, até com a contratação de passistas, para as apresentações particulares como as que aconteciam no Litoral da Bahia, e diz que, ao longo do tempo, elas criaram vínculos com a escola de samba.
Eu sou o samba
Yuka conta que durante sua estadia na escola de samba, apesar de trabalhar na confecção dos próprios trajes, ainda o fazia com certa dificuldade, dado o custo das peças. Para ela, a maior dificuldade para se manter rainha de bateria consistia no trabalho pouco valorizado em termos de incentivo financeiro. “Só minha roupa é mais de mil, porque plumas, penas são extremamente caras. Como eu dançava no Japão também, podia investir, mas pessoas que moram aqui, que não saem daqui, como podem investir não tendo patrocínio, não tendo apoio?”, questiona.
De Camaçari, as constantes vindas a Salvador aos poucos também dificultaram sua participação nas atividades da escola. Yuka lembra de sua rotina: “todo dia tinha que ir pra lá [Salvador] de ônibus, gastando muito tempo, ida e volta, e ainda tendo filho e marido aqui, e não deixava faltar nada, fazia almoço, dormia pouco, lavava as roupas, fazia almoço e tudo. Essa parte foi difícil”. Mesmo à distância, ela conta que cultiva o desejo de ajudar e colaborar no crescimento da escola. “Se eu morasse perto, estaria ajudando de alguma maneira. Eu queria estar lá ajudando, porque é a escola de samba que merece”, diz.
Yuca veio do Japão e foi rainha de bateria da Unidos | Foto: Arquivo Pessoal
A motivação para Yuka continuar como rainha de bateria da Unidos de Itapuã era a recepção que tinha dos colegas e do público. Yuka nunca foi discriminada por sua
nacionalidade enquanto dançava o gênero popular no Brasil. “Nessa escola, como japonesa, eles não [me] discriminaram, não tiveram preconceito, me receberam bem, agradeço muito por isso”, relata.
Durante sua carreira, que se iniciou ainda no Japão, em 1993, foi passista de escolas no Rio de Janeiro como a Beija Flor, Salgueiro, Grande Rio, Mocidade e foi madrinha de bateria na Vila Maria em São Paulo. Vir para Salvador, foi uma escolha motivada pelo desejo de desenvolver a cultura dos desfiles de samba nas terras baianas. “Eu me identifiquei com essa escola, porque aqui na Bahia é difícil, não tem muito apoio para a escola de samba, não é forte daqui, só que eu queria que o samba crescesse aqui também. Eu queria me unir com eles, então aceitei a proposta”, lembra a dançarina.
Sonho meu
Nailton afirma que um dos seus desejos é transformar a escola de samba de Itapuã em um projeto semelhante ao do cantor Carlinhos Brown, que transformou o bairro do Candeal em um centro cultural. Carlinhos Brown nasceu na comunidade do Candeal, localidade marcada por vários problemas urbanos, como esgoto a céu aberto, mas modificou a estrutura do bairro.
“Espero que no futuro seja esse Afródromo como Brown fala, que no futuro possamos desfilar esses blocos afros, e afoxés, as escola de samba, blocos indígenas, onde a cultura esteja centralizada em um só lugar. Que seja na Assembleia Legislativa, no Autódromo ou na Boca do Rio”, diz como quem conta um sonho. O músico Nailton avalia que para transformar o espaço da escola de samba no que almeja ainda é necessário a organização da Unidos de Itapuã. “Existe uma falta de organização da nossa parte, perante a sociedade, mas também ao poder público”, diz.
Desfile da Unidos no Centro Histórico | Foto: Arquivo pessoal
Nailton ainda afirma que o preconceito também está inerente à visão que determinadas pessoas têm da escola. “No Carnaval, fomos convidados a colocar um estande na Federação Nacional de Escolas de Samba (Fenasamba), porque não temos liga [entidade que administra escolas de samba] e um cara de Salvador disse que [em Salvador] não tem escola de samba e que somos desorganizados, porque ele não sabe da dificuldade que é isso e nem conhece a gente, não sabe que a gente não tem nada na mão. Não tem nem classificação de escola de samba, já somos discriminados”, relata o músico.
Hoje, a escola tem uma sede, criada por incentivo de Carlito Cafroxo, que fez parte da extinta escola de samba Unidos de Amaralina e que Nailton pretende colocar como baluarte da escola, em homenagem. Nailton diz que Carlito o incentivou a criar uma sede para a escola, pois todas as escolas de samba de Salvador que não tinham uma sede, encerraram as atividades, “diferente dos blocos afro”.
Antiguidade é poço
Nailton relembra que Juventino, pernambucano que morava em Salvador, em meados do século, foi um dos precursores dos ternos de reis, que desfilavam em dezembro e início de janeiro, no ritmo de macharancha. “Juventino quando sai de Salvador para o Rio de Janeiro leva essa ideia. O objetivo era colocar, no Rio de Janeiro, da mesma forma que acontecia em Salvador”, relata.
Escola de samba reverencia quem veio antes | Foto: Arquivo pessoal
Apesar das tentativas, o fenômeno não teve o mesmo ‘boom’. É só quando Juventino insere os desfiles no carnaval que sua ideia encontra o sucesso. Assim, pode-se dizer que as escolas de samba foram concebidas e fundamentadas em Salvador.
“Mergulhando na ancestralidade, vamos ver que todos os movimentos culturais nasceram dali. Todos os blocos afros que tem em Salvador foram oriundos de escola de samba, como o Ilê Aiyê que usa a cuíca e o chocalho. Na década de 60, o carnaval de Salvador era escola de samba”, ressalta Nailton.
Lição de vida
A Unidos tem o objetivo de levar esse valor ancestral para crianças e adolescentes, mesmo em meio a problemas financeiros. A escola surgiu como um projeto sem fins lucrativos, em 2007, para ensinar jovens da comunidade de Itapuã a tocarem instrumentos, como percussão, tambor, entre outros. A iniciativa, que partiu do amigo de infância de Nailton, Ciro Cuca, reuniu outros colaboradores como Binho, irmão de Nailton; Neo e Al Pitanga, que ensinaram Nailton a tocar bateria. Hoje, apenas Nailton e Binho coordenam o projeto.
Nailton Maia, criador da escola, junto com o irmão, Binho, e amigos | Foto: Arquivo pessoal
Ao som dos repiques do tambor, Nailton pretende levar o que sabe para a nova geração do samba, ritmo musical que tem forte influência em Itapuã, como com As Ganhadeiras de Itapuã, grupo no qual Nailton já tocou. “A música tem um poder de transformação e a forma que eu posso contribuir com meus irmãos é através da música, com o tambor. Para mim o tambor é uma forma de comunicação e transformação”, destaca.
Para o projeto tomar forma, Naiton e os colaboradores precisaram tirar dinheiro do próprio bolso para comprar instrumentos, como violão e cavaquinho, e ministrar as aulas. A participação é gratuita e todos professores são voluntários.
Essa matéria foi escrita por Fê Sena e Elaine Sanoli, ambos do curso de Jornalismo na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e repórteres para a DémodÉ
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