top of page
Foto do escritorMaiquele Romero

Cabelos fora da curva: a nova onda de alisamentos capilares

Após anos de celebração aos cabelos naturais, o alisamento químico voltou com tudo

Mulher alisando cabelo

Foto: Polina Tankilevitch


Há séculos, cabelos lisos são considerados o ideal de beleza, enquanto cabelos crespos e cacheados são muitas vezes vistos como "indomáveis", “sujos” ou "desarrumados". Esse estigma levou muitas mulheres a alisarem seus fios durante anos até que, em meados de 2016, um movimento de celebração das madeixas naturais ganhou força na internet e nos salões, popularizando a transição capilar.


O boom da transição simbolizou a autoafirmação da identidade de mulheres que, por um longo tempo, foram pressionadas a alisar seus cabelos e também causou uma revolução na indústria da beleza, aumentando a demanda de marcas por produtos específicos para cabelos crespos e cacheados.


Nos mercados, 9 em cada 10 pessoas passaram a perceber uma variedade maior de produtos para cabelos crespos e cacheados, de acordo com uma pesquisa encomendada pela Unilever para a Opinion Box em 2021. Na internet, plataformas como o YouTube tornaram-se espaços onde influenciadoras com cabelos crespos e cacheados compartilham suas jornadas, dicas e truques para cuidar das madeixas de forma natural.


Dentre as muitas vozes, se destacou, por exemplo, Rayza Nicácio, cuja identidade e paixão por cabelos naturais conquistou mais de 1,5 milhão de inscritos interessados em dicas de penteados e finalizações. Porém, hoje acontece um movimento inverso. Agora, circulam nas redes vários vídeos de transformações, em que mulheres mostram porque optaram pelo alisamento novamente e termos como “day after” e “big chop” cedem lugar a “alinhamento térmico” e “retoque de raiz”.


A própria Rayza Nicácio alisou o cabelo novamente, assim como a escritora Bruna Vieira, que recentemente publicou um desabafo no TikTok sobre a decisão de voltar ao liso. “Eu estou numa fase da minha vida que eu tenho outros desafios” comentou a influenciadora.       


Ao rolar pelos comentários, é possível encontrar a trend “a volta das progressivas”, em que centenas de mulheres crespas e cacheadas mostram o resultado do alisamento capilar. Essa mudança também se reflete nas estatísticas, com um aumento de 53,32% nas pesquisas por "cabelos lisos" nos primeiros 10 meses de 2023, comparado ao ano de 2020, de acordo com o Google Trends.


Enquanto algumas pessoas compartilham no TikTok vídeos sobre o resultado da progressiva, outras usam o espaço para compartilhar suas opiniões sobre a nova era de alisamentos químicos | Reprodução: Redes Sociais


Além do ambiente digital, essa transição é percebida no mercado físico. Consumidoras observam a redução de produtos para cabelos cacheados e crespos nas prateleiras dos supermercados. Os salões especializados em cachos também sentem a diminuição na demanda por serviços de transição capilar


Em entrevista a DémodÉ, Eliza Estrela, cabeleireira no Atelier dos Cachos desde 2014, revelou que de lá para cá observou uma redução significativa no número de clientes em transição capilar, algumas delas inclusive, deixam de frequentar o salão por um tempo e quando retornam dizem “eu não aguentei e dei química”.


De volta aos anos 2000?


Jeans de cintura baixa, celulares em flip, calça cargo. Esses são alguns itens que voltaram à moda nos últimos anos e fazem parte da tendência Y2K ou anos 2000. Sabe o que mais estava em alta nessa época? Os cabelos lisos de famosas como Britney Spears e as Destiny’s Child. 


Kelly Rowland, Beyoncé Knowles e Michelle Williams com cabelos alisados no VMA's 2000.

Cantoras do grupo Destiny's Child com os cabelos alisados no videoclipe de "Bootylicious" | Foto: Reprodução


A volta dessa tendência coincidiu com o fenômeno das laces, perucas e extensões capilares de alta qualidade, que ganhou popularidade em pouco tempo. As laces, especialmente, tornaram-se uma parte essencial do dress code de muitas celebridades e figuras públicas. Mas a tendência Y2K é apenas a ponta do iceberg. De acordo com Bianca Neris, especialista em alisamentos por progressiva, os principais motivos relatados pelas suas clientes ao optar por alisar os fios são o desejo de mudar e a praticidade.


No entanto, para mulheres negras, essa jornada costuma ser mais complexa. “Acho que se eu for parar para comparar onde eu me sinto mais desconfortável com meu cabelo natural e onde eu penso mais em voltar a alisar é no trabalho”, desabafou a advogada Isabella Santos, de 25 anos.


O sentimento de inadequação de Isabella aflige também outras mulheres. Um estudo publicado em 2020 na revista Social Psychological and Personality Science mostrou que, em ambientes de trabalho, mulheres negras com cabelo natural são vistas como menos profissionais e competentes e possuem menores chances de passar numa entrevista que mulheres negras com cabelos alisados e mulheres brancas com qualquer tipo de cabelo.


Fora do ambiente de trabalho, a sensação de deslocamento continua. Isabella comenta que consome muitos conteúdos do TikTok em seu tempo livre e apesar de não procurar por vídeos sobre alisamento, percebe que sua for you está sendo tomada por pessoas com cabelo liso e isso influencia seu desejo de alisar.


Para a enfermeira Hanna Andrade, de 24 anos, “apesar de um movimento de aceitação dos cabelos crespos e cacheados ter se espalhado mundo afora, o racismo nunca permitiu que muitas meninas e mulheres o visse como algo revolucionário e libertador, fora daquele contexto [de alisamento].” 


De fato, ao falar sobre os motivos que levaram as mulheres a desistirem da transição capilar, a transferência do esforço de escovar e pranchar o cabelo diariamente para horas de finalização a fim de chegar ao cacho perfeito é um dos motivos mais citados.


Todo cabelo tem frizz e diferentes texturas. Abraçar a textura natural do cabelo também significa que não existe um ideal de cacho perfeito a ser alcançado, até porque a própria ideia de cacho perfeito é inalcançável. A cabeleireira Ana Estrela explica que às vezes apenas uma hidratação uma vez por semana e um creme de pentear de qualidade são o suficiente para manter o cabelo belo e saudável.


Muito além da imagem


“Todo mundo alisava na família, e mainha dizia que queria meus cachos mais soltos. Mas claro que todo mundo sabe o real motivo de toda uma família preta alisar seus cabelos.” relembra Hanna. A mesma razão que também levou a professora Yasmin Bonfim, de 22 anos, a alisar seu cabelo desde cedo. “Quando eu falava que meu cabelo era muito armado ninguém vinha me falar para tentar usar um creme específico ou finalizar de outro jeito, as respostas eram sempre ‘alisa, dá um botox, dá uma selagem”.


Essa negação dos traços negros é um dos pilares do racismo, utilizado para diminuir suas vítimas, especialmente quando se trata do cabelo, algo fortemente ligado à identidade das pessoas negras.  Exemplo disso foi a Lei de Tignon de 1786, imposta pelo governador da Louisiana, Esteban Rodriguez Miro. A lei exigia que as mulheres de ascendência africana — livres e escravizadas — cobrissem seus cabelos e evitassem chamar "atenção excessiva ao vestuário". Essa imposição não era apenas um controle sobre a aparência, mas também um esforço para reforçar a estratificação racial e social da época.


No Brasil, livros históricos como "O Escravo nos Anúncios de Jornais Brasileiros do Século XIX" de Gilberto Freyre e "Ser Escravo no Brasil" de Kátia Mattoso, recordam a prática cruel de raspar os cabelos dos africanos no momento em que eram vendidos para os senhores de engenho. A raspagem forçada dos cabelos não era apenas uma questão de estética, mas uma tentativa brutal de inferiorizar a população negra, privando-os de sua identidade cultural e autonomia pessoal.


Nesse contexto, movimentos como o Black Power desempenharam papéis cruciais na celebração dos cabelos naturais e na afirmação das comunidades negras ao redor do mundo. O afro foi uma das manifestações mais visíveis desse movimento, um penteado que celebrava a textura natural dos cabelos crespos.


Mulheres do Partido dos Panteras Negras usavam cabelo afro como um ato político | Foto: Reprodução


O afro não era apenas um estilo de cabelo, era um símbolo de orgulho racial e resistência, destacando a importância dos cabelos naturais na identidade negra, desafiando estigmas. É o que diz o Ilê Aiyê em Que bloco é esse: "Somos crioulos doidos, somos bem legal. Temos cabelo duro, somos black power".


A liberdade prevalece


A transição capilar não foi só uma fase. Apesar da nova onda de alisamentos, o movimento foi fundamental para que muitas pessoas que jamais tiveram contato com a textura natural dos seus fios pudessem conhecer melhor os seus cabelos e a si mesmas.


“O processo de aprender a cuidar do meu cabelo foi complicado pelo fato de alisá-lo durante a maior parte da minha vida” relatou Hanna, que usou alisantes como Guanidina e Amônia por mais de 10 anos. “Cortar, eu mesma, a parte alisada do cabelo foi realmente libertador”, diz a enfermeira.


No entanto, liberdade também é ter uma boa relação com o seu cabelo e alisá-lo, se quiser, como é o caso de Bruna Vieira. “Eu não me arrependo de ter passado pela transição capilar, foi um processo lindo na minha vida”, comentou a escritora. “Às vezes você não quer gastar o tempo que você costumava gastar em outra época e isso não significa que você não se aceitou”, continua.


Seja qual for a escolha, o que importa é se sentir bem consigo mesma, sem a necessidade de usar um ou outro tipo de cabelo para se adequar às expectativas de alguém. Além disso, é melhor optar por procedimentos e produtos seguros na hora de tratar suas mechas.


A esteticista Bianca Neris aconselha que pessoas que desejam alisar os cabelos façam uma busca minuciosa pelos profissionais mais qualificados e evitem realizar o procedimento em casa. Bianca recomenda também dar prioridade aos produtos extraídos de fontes orgânicas e com selo da Anvisa.


Afinal, a segurança e o bem-estar devem sempre ser as principais preocupações ao tomar decisões sobre cuidados capilares, permitindo que cada pessoa abrace sua individualidade e sinta-se bem consigo mesma.



Comments


bottom of page