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Foto do escritorLuciana Freire

Dia de Branco

Como o branco representa uma fusão entre religiosidade e moda em Salvador, capital que guarda o valor da ancestralidade africana

Usar branco em Salvador transcende a vestimenta e se expande para a religiosidade como forma de fé |

Foto: Marcelo Reis (Iphan)


Salvador, uma cidade em que as cores vibrantes se misturam aos rituais sagrados, as sextas-feiras ganham um movimento simbólico: o resplandecer do branco imaculado. A tradição do Candomblé se entrelaça à moda que vai além do guarda-roupa para se tornar uma celebração da espiritualidade, da cultura e do estilo. À medida que o sol se põe, um esplendor da cor que representa a luz ecoa pelas ruas da capital baiana.

Usar branco nas sextas-feiras se tornou uma ação coletiva. Muitos visitantes, turistas e moradores, independentemente de suas crenças, aderem a essa tradição, transformando as ruas, principalmente do Pelourinho, em uma passarela viva. 


Publicação do poeta baiano James Martins | Reprodução


Em entrevista a DémodÉ, Vilson Caetano, Babalorixá da Casa do Rei e Senhor das Alturas, o Ilê Obá Lokê; e professor da UFBA, diz que o branco vai além do simbolismo ritualístico. É uma expressão de identidade, uma tradição que ultrapassa os limites dos terreiros e se manifesta nas escolhas de moda da cidade. “O branco me parece que se tornou a cor oficial da cidade de Salvador, como nas festas populares, não apenas no dia de sexta-feira, independente de serem da religião ou não”, afirma.


A jornalista Cristiele França, 39, adepta do Candomblé, veste branco toda sexta para trabalhar e incentiva outros colegas a fazer o mesmo. Para ela, o branco não é apenas uma cor de vestuário, é uma declaração em alinhamento com Oxalá, “pai maior” no Candomblé. Nas sextas-feiras, assim como em ocasiões especiais, o branco se torna uma parte de sua identidade, uma escolha que vai além das tendências da moda efêmera.


Cristiele diz que é interessante o movimento das pessoas usarem o branco na sexta-feira, mas gostaria de que fosse além da “modinha”. “Vejo muitas pessoas usando como folclore: ‘é sexta-feira, Salvador, eu sou alternativo, eu vou botar uma guia no pescoço e usar minha roupa branca’, mas seria interessante que as pessoas buscassem entender melhor nossa religiosidade, justamente para quebrar esse estereótipo, o preconceito, que ainda é latente na nossa cidade por meio do racismo religioso e da intolerância religiosa”, defende.


Jornalista Cristiele França, de branco | Foto: Arquivo Pessoal


Em seu dia a dia, Cristiele usa o branco não só às sextas-feiras, mas em outros dias da semana. “As quartas-feiras, que é o dia de Oyá Balé [Iansã do Balé], eu uso branco, até porque Xangô também usa branco”, diz. Quando era criança, Cristiele, já presenciava a mãe, que é Yalorixá, realizando atividades na casa de terreiro. “Via minha mãe atendendo clientes em casa para jogos de búzios, fazendo Ebó [oferenda, sacrifício ou troca de elementos com os Orixás], a acompanhando nas festas no terreiro de meu avô e foi lá que Oyá me escolheu como sua primeira Equede”, relata.


Tradição ancestral


No epicentro dessa narrativa está Oxalá, o pai primordial reverenciado como o mais velho entre os orixás. Vilson ressalta a importância da cor branca no Candomblé da Bahia, como seu uso em ritos da religião. “Há o Ciclo das Águas de Oxalá, onde as pessoas que fazem parte desse ritual, utilizam branco durante 16 dias, além de cumprir outras interdições”.

Babalorixá da Casa do Rei e Senhor das Alturas,

o Ilê Obá Lokê, Vilson Caetano |

Foto: Arquivo Pessoal


Além desse rito, Vilson afirma que quando uma pessoa se submete a “alguns tratamentos mágicos e religiosos, os chamados Ebós ou limpezas”, dependendo do tratamento, é obrigatório ficar em resguardo por um período de 7 a 14 dias, usando branco. De acordo com Vilson, o branco também é utilizado durante o período de luto.


A cor branca é representada pela ausência de cores, que segundo Vilson, significa “luz, o infinito, algo que é indeterminado, ainda não foi individualizado, que nos seca, nos protege e nos guarda ao mesmo tempo que revela e vela”. O Babalorixá diz que quando fez uma viagem para a África, em 2020, visitou a cidade de Oyo, localizada no sul da Nigéria, com outros professores da UFBA, para as resoluções do direito de patrimonialização da cidade.


Vilson ficou surpreendido com a atitude do rei de Oyo, Lamidi Adeiemi III, falecido em 22 de abril de 2022. O professor da UFBA disse que no dia anterior a reunião com o rei, tinha surgido uma vaga em sua agenda e todos professores solicitaram a pessoa que estava intermediando o encontro que avisasse que estariam perto do palácio, mas o rei optou por não recebê-los, porque ele precisava se arrumar, o que Vilson achou estranho.


No entanto, quando compareceu à reunião no dia seguinte, o rei estava todo em vestes brancas. O Babalorixá diz que além dele ser de Obatalá [Oxalá], foi explicado que o branco era a cor oficial para as pessoas do reino de Oyo, tradição de influência Iorubá.


Governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), o vice governador e secretariado,

todos de branco na sexta-feira | Reprodução: Twitter


Mas como surgiu o uso de branco às sextas-feiras?


Além da ligação africana, o uso da cor branca também é respaldado na contribuição islâmica, mas que de acordo com Vilson, tem pré-requisito primário no contexto da África, que de acordo com ele, em alguns locais do continente, as pessoas “não vestem branco na sexta-feira para não serem confundidos com os mulçumanos”. Isso porque o branco no Islamismo está associado a pureza e purificação.


Já em blocos afoxés, como os Filhos de Gandhy, diferente do que muitos acreditam por influência da visão ocidental, a cor branca não está associada a paz, mas à guerra. Vilson diz que há mitos de que os guerreiros africanos enviados para a guerra, pintavam a cabeça de azul. Por isso, as cores oficiais do Afoxé Filhos de Gandhy é branco e azul. 


Entretanto, em meio a efemeridade da moda, há um chamado à consciência. A popularização do branco nas sextas-feiras em Salvador não deve ser apenas superficial. Há um desejo de que as pessoas mergulhem na riqueza cultural e espiritual por trás dessa escolha de vestimenta, contribuindo para uma compreensão mais profunda e respeitosa das tradições afro-brasileiras.





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