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“Malês” revive a ancestralidade negra e a luta pela liberdade (uma crítica sem spoiler)

  • Foto do escritor: Fê Sena
    Fê Sena
  • 27 de nov. de 2024
  • 4 min de leitura

Obra que retrata Revolta dos Malês, na Bahia, é vibrante, mas ainda mantém padrões


DémodÉ | Felipe Sena


“A Bahia é o maior griô do Brasil”, disse o diretor e ator Antonio Pitanga, durante o lançamento do longa “Malês”, em Cachoeira, no Recôncavo da Bahia, uma obra que revive a Revolta do Malês, maior levante de negros escravizados no Brasil. No entanto, vamos nos atentar primeiro ao que se trata um “griô”.


No Brasil, o termo se refere a uma pessoa de uma comunidade que detém a memória do grupo em que foi criado e convive e se faz um difusor de tradições. Ou seja, Antonio Pitanga remonta a Bahia a um manancial de histórias e tradições negras, que poucas pessoas conhecem.


“Males” foi escrito por Manuela Dias, autora de outras obras como a telenovela “Amor de Mãe”, a série “Justiça”, entre outras produções da Rede Globo. Remontando ao período escravocrata do século XIX, o longa mostra de forma nua e crua aspectos que salientam as tensões do levante de revolta das pessoas em situação de escravidão, que lutaram corajosamente em prol de sua liberdade, no Reconcavo da Bahia.


Não à toa, a maior parte das cenas foram gravadas na cidade de Cachoeira, onde o filme foi exibido no Cine Theatro Cachoeirano, na Praça Teixeira de Freitas, na sexta-feira 23. No levante, cerca de 600 escravizados tomaram as ruas de Salvador convocando outros irmãos de cor a se rebelarem contra a escravidão.


Em sua maioria, os escravizados que residiam na região do Recôncavo eram africanos mulçumanos. No entanto, o plano não saiu como esperado e alguns envolvidos foram duramente punidos.


Aspectos históricos se misturam aos ficcionais, o que é comum em produções que buscam reproduzir a realidade. Isso faz com que mesmo com cenas pesadas de violências, alguns aspectos sejam leves e alguns até descontraídos, como a risada gostosa de Camila Pitanga, atriz e filha do diretor do longa, que faz parte do elenco do filme.


Entre os tópicos históricos que se sobressaem estão a catequização dos africanos, principalmente mulçumanos, trazidos à força de seu continente para trabalhar em terras brasileiras. De acordo com a Encyclopedia Britannica, cerca de 45% da população africana é muçulmana.


Com isso, se tornam evidentes aspectos como a religiosidade muçulmana que se mescla com o candomblé. No entanto, no filme esse aspecto está mais separado e cada um tem seu devido lugar de posicionamento.


Outro ponto que chama a atenção é a alfabetização das mulheres brancas. Não é de surpreender que a educação não era primazia no Brasil Colônia, quando aconteceu a Revolta dos Malês. Segundo pesquisa feita pelo historiador paranaense Laurentino Gomes, muitas mulheres vindas de famílias ricas, não sabiam ler.


É aí que se sobressai o grio de conhecimento ancestral do negros, como os mulçumanos que eram inteligentes. Os escravizados mulçumanos eram vistos como uma elite, por serem em sua maioria alfabetizados em língua árabe e saberem ler e escrever. Os negros que sabiam ler e escrever carregavam um Alcorão e usavam um anel de prata. Alguns deles eram escravizados de ganho, ou seja, que ganhavam um pequeno percentual pelos serviços oferecidos.


Não é de se estranhar que um dos escravizados no filme “valia ouro”. Outro aspecto histórico abordado é a tão sonhada alforria, assim como o estupro de mulheres escravizadas. Além do preconceito e misticismo atrelado às religiões de matriz africana por parte dos brancos.


Quanto aos traços ficcionais, diversas cenas se assemelham aos moldes de outras cenas que provavelmente já foram vistas em outras produções, seja de filmes, séries ou telenovelas que retratam o passado escravocrata do Brasil. Contudo, não é esperado que se fuja desse aspecto, pois as violências e forma racista que as pessoas negras trazidas da África, eram as mesmas ou parecidas, mesmo que em regiões diferentes.


Tudo isso é vivido na pele pelo casal principal do longa. São eles Abayome (Samira Carvalho) e Dassault (Rocco Pitanga), assim como de Pacífico Licutan (Antonio Pitanga), que mostram que o amor preto pode resistir até mesmo a todas as batalhas diárias. Amor esse que é um alento e o faz continuar, mesmo sem saber se terão um ao outro fisicamente, pelas ameaças que são impostas a uma pessoa escravizada.


“Males” exprime o principal significado da luta por ser livre, pois um bebe carregado no ventre de uma mulher negra escravizada, já estava condenado desde aquele aconchegante ninho materno, a escravidão. Atores como Rocco Pitanga, também filho de Antonio Pitanga, e da atriz Samira Carvalho, que participaram do bate-papo após a exibição do longa, mostram com toda sua fúria, a determinação por um futuro livre das amarras da escravidão, o que permeia dos ideias de um só povo.


Aspectos sombrios dos tempos escuros da escravidão vão até a paleta de cores das cenas, sempre escuras e algumas vezes, opaca. Combinado a isso, uma trilha sonora diversas vezes de tensão.


Algumas escolhas de cortes se sobressaíram mais secas. Além disso, as mudanças de tensão nas cenas, a vingança e outros pontos que vem como justiça, são previsíveis e quebram uma narrativa poética da construção, o que não compromete o percorrer da história, até porque nem tudo tem um início, meio e fim. No entanto, parece uma forma de forçar o público a vibrar a todo instante, até mesmo com descontentamento por certas atitudes de alguns personagens.


A atuação impecável, que vai dos trejeitos a oratória de personagens como Abayome e Dassault (Rocco Pitanga), assim como de Pacífico Licutan, ressaltam a profunda pesquisa para viver o papel de escravizados, até mesmo para os que não tinha muito conhecimento a respeito do levante.


O griô vasto e infinito deixado através do legado dos ancestrais negros permanece vivo e pulsante. No entanto, as pessoas negras não querem hoje resistir, mas viver a liberdade para plantar o caminho para os que estão por vir.


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